A roleta russa
por Licínia Quitério
Pedi-lhe que tapasse o rosto antes de entrar.
Ele pôs a máscara e descalçou os sapatos. Como no Japão, disse, e a expressão desanuviou a tristeza que tentava apoderar-se da sala, de nós.
Disse-lhe para se sentar e eu sentei-me no sofá mais afastado do dele.
Conversámos muito, como dantes, e eu soube que ele se ria pelo som que atravessava a máscara e pelos movimentos desacertados do corpo.
Falámos de amigos, de amigos de amigos, com quem não voltámos a estar. Passaram a viver muito longe, os amigos, num lugar que dantes era perto. Alguns morreram. Agora morre-se muito, porque se é velho, porque se é frágil, porque não se teve cuidado, porque sim. A morte e a vida parecem entender-se bem, nada como dantes, ou nós não tínhamos pensado nisso.
Houve livros entre as nossas mãos, não recusámos o tráfico. Era o que faltava que aqueles livros nos contaminassem, mas daí, quem sabe, há lá agentes mais contaminadores do que os livros. Os tiranos costumam queimá-los em tempos de outras pandemias e sabem porquê.
A visita do meu amigo deu-me um sabor amargo a conversa não amadurecida, apenas aflorada, como se tivesse acontecido com um muro de sombras pelo meio
O mesmo, com poucas variantes, quando vêm outros amigos ou amigas, cada vez menos, que o medo comanda esta nossa vida.
Tenho saudades dos trejeitos de boca de cada um, dos sorrisos, e das vozes sem serem coada pelo pano.
Fico triste a pensar, qual de nós escapará da roleta russa.
Nada como dantes. Não vale a pena fingir.
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